O projeto, que começa a ser implantado em março, prevê milhares de unidades por toda a região
Centenas ou até milhares de fábricas de chocolate, portáteis e desmontáveis, distribuídas por toda a floresta amazônica, operadas pelos povos locais, inclusive indígenas. Essa ideia, que começa a ser aplicada em quatro comunidades selecionadas, a partir de março, partiu da iniciativa de um pequeno grupo de cientistas que têm em comum trabalhos pela preservação da floresta e criaram o Instituto Amazônia 4.0. Eles viram nessas biofábricas móveis, ou Laboratórios Criativos da Amazônia (LCAs), como são chamadas, uma saída para que os povos da floresta agreguem valor ao cacau e à semente de cupuaçu, que atualmente vendem como matéria-prima, ou com pouco processamento.
O investimento até agora é de R$ 5,6 milhões, sem considerar as doações de conhecimento, equipamentos e horas de trabalho fornecidos por empresas, voluntários e especialistas em chocolate.
O BID Lab, que é o laboratório de inovação do Banco Interamericano de Desenvolvimento, está investindo R$ 3 milhões este ano na fase atual do projeto – a prova de conceito em campo, com tecnologia fornecida pela NEC do Brasil, para comprovar que o projeto é exequível e viável financeiramente. Os recursos são destinados a levar a inovação às comunidades e contratar a Conexsus, que vai prepará-las para o negócio – perfil de crédito, conhecimento do que estão vendendo, rodadas de negociações com municípios etc.
Uma unidade em Manaus vai produzir as fábricas, seguindo o protótipo feito em São José dos Campos (SP)
Outros R$ 2,6 milhões já foram investidos até agora na cadeia de valor do cacau-cupuaçu, entre consultoria, compra de equipamentos, transformações feitas nos equipamentos e adequação tecnológica. Os recursos foram executados financeiramente com a compra dos domos geodésicos, um tipo de tenda de estrutura triangular, rígida e resistente que constitui a estrutura das biofábricas. Elas foram projetadas, sem envolver dinheiro, pelo Atelier Marko Brajovic, utilizando materiais leves, resistentes e desmontáveis.
O protótipo da fábrica foi feito em São José dos Campos (SP). Está sendo implantada uma unidade em Manaus (AM), onde as fábricas serão produzidas e depois transportadas para a floresta.
Essas fábricas permitem processar o cacau e a semente de cupuaçu, transformando-os em chocolate de alta qualidade. Assim, em vez do preço de R$ 10 por quilo de matéria-prima vendida, as comunidades poderão ganhar R$ 200 por quilo de chocolate “finíssimo” produzido, calcula Ismael Nobre, professor e pesquisador da Universidade de Campinas (Unicamp/SP)
Biólogo, Ismael Nobre integra o projeto com seu irmão – o climatologista Carlos Nobre, que fez parte da equipe internacional de cientistas laureada com o Prêmio Nobel da Paz em 2007 – e a professora Tereza Cristina Brito Carvalho, da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora do Laboratório de Sustentabilidade da USP.
Em 2017, menos de meia dúzia de cientistas criaram o Instituto Amazônia 4.0. Hoje permanecem os irmãos Nobre e a professora Carvalho. O professor Ismael, diretor-executivo, diz que o instituto representa a quarta revolução industrial e busca fomentar uma nova bioeconomia na floresta amazônica, pelas mãos dos povos tradicionais e indígenas.
Sem poluir nem agredir o meio ambiente, as biofábricas produzirão chocolate, aproveitando as plantações naturais de cacau e cupuaçu, que proliferam na floresta. Os negócios ficarão inicialmente nas mãos das comunidades já selecionadas entre os povos ribeirinhos, quilombolas, extrativistas e assentados da reforma agrária. Depois, serão expandidos para outras populações.
Os ribeirinhos e quilombolas já fermentam o cacau e vendem à indústria de chocolate fino. Com esse benefício, o preço de R$ 10 pela matéria-prima sobe para R$ 30. Todos já estão envolvidos em melhorar a fermentação e aprender métodos para produzir chocolate. Esses grupos usam técnica rudimentar e elementos de baixa tecnologia, mas não se conformam por vender o produto tão barato, enquanto o chocolate pronto custa cerca de 20 vezes mais caro, diz o professor Ismael. O chocolate nascente é chamado de “tree-to-bar”.
Cacau abundante na área de manejo, trabalho já existente com os frutos, inconformismo com o preço de venda e esforço para agregar valor foram os principais critérios adotados pelo instituto para a escolha das comunidades que receberão a capacitação e terão prioridade na busca por apoio para viabilização do negócio.
Depois do capital de filantropia usado para iniciar o processo serão necessários fundos de investimentos para a implantação massiva das fábricas em sistema comercial. O modelo deverá ser concebido de forma que a produção local possa pagar a implantação das fábricas disponibilizadas.
Para que cada comunidade não precise ter vários milhões de reais ou capacidade de contratar doações ou empréstimos, o instituto está pensando em um modelo de negócio em que as comunidades possam “assinar uma fábrica”, que ficará disponível como serviço, e não como posse, explica o professor Ismael. É algo como software como serviço, que as grandes empresas de tecnologia adotaram.
Mais do que um sonho, o projeto está se descolando do projeto para a realidade. Depois do ‘pontapé’ inicial, previsto para março, durante oito meses as quatro comunidades serão treinadas. Para isso, uma fábrica itinerante completa, inclusive com ambiente para aulas, será levada de uma comunidade para outra, começando pela reserva extrativista e depois seguindo para a área dos assentados da reforma agrária, quilombolas e ribeirinhos, nessa sequência. Em 2024 deve começar outra fase, de expansão para toda a Amazônia. Mas a equação financeira ainda está sendo montada.
Engenheiros de tecnologia, de alimentos, de software, pessoal especializado em mecatrônica (junção de mecânica com eletrônica), arquitetos e outros especialistas encararam o desafio apresentado pelos cientistas – projetar uma fábrica de chocolate que pudesse ser construída em outro local e depois montada no meio da floresta, ao mesmo tempo moderna e simples de operar.
Empresas de diversos setores aderiram ao projeto, como a NEC, que se tornou parceira do instituto e cuidou de toda a parte de comunicação. Cristiano Blanez dos Santos, diretor de inovação da companhia, conta que foram dois anos de discussões e estudos para decidir qual tecnologia oferecer. Para a comunicação, a opção foi por rádio.
Foram identificados quatro provedores de internet, cada um a cerca de 30 km das comunidades. Uma antena no provedor e outra na fábrica viabilizará a comunicação, que será composta por outros equipamentos, como roteadores e switches para distribuir o sinal pelas instalações. As populações ao redor são clientes potenciais para os provedores.
As fábricas terão cabeamento, computador, controle de acesso às máquinas por reconhecimento facial, comandos por voz, sensores eletrônicos, forno, tudo automatizado e coordenado pelo instituto, diz Blanez dos Santos.
“A pessoa nem precisa saber ler para receber as instruções da máquina”, diz Ismael Nobre. “Demos um passo de colocar qualquer língua, inclusive indígenas. É muito comum encontrar indígenas que não falam português, como os yanomâmis, e eles poderão operar as máquinas como qualquer um de nós e fazer a produção acontecer.”
Os ambientes dos domos são triangulares, divididos para a fábrica; torra, forno e moinho; e enformar o chocolate. A tenda maior é a da fábrica, com 5 metros de altura e 11 metros de diâmetro. Cada unidade tem 100 metros quadrados. O domo para sala de aula tem capacidade para 40 alunos e é equipado com materiais de ensino como tablets e lousa eletrônica, além de software que conecta as aulas com a fábrica. Ao mesmo tempo em que aprende, o aluno vê o que está acontecendo na fábrica. Por meio de internet das coisas, os dados gerados seguem pela rede.
“Criamos uma fábrica ‘plug and play’”, diz o professor Ismael, brincando com o conceito ‘plugar e usar’, que indica facilidade de uso. “Em uma semana tem uma fábrica prontinha. É toda modular e não precisa de fundação nem terraplanagem, os sistemas têm um piso que faz a nivelação.”
Para isso, o instituto associou a cultura, os costumes e as receitas dos povos da região à expertise de renomados chefs da indústria de chocolates, ‘chocolatiers’, engenheiros e especialistas em tecnologia. É dessa fusão que surgiram as biofábricas portáteis.
Uma das colaborações veio da Cacauway, uma fábrica de chocolate localizada na rodovia Tranzamazônica, município de Medicilândia, no Pará. O professor Ismael conta que o negócio surgiu de uma cooperativa de produtores que plantavam cacau e vendiam para grandes ‘traders’. Depois, decidiram montar uma fábrica, hoje com sua marca já consolidada. “Mas tiveram super desafios, levaram anos para chegar a uma equação financeira”, conta o professor. “A maioria dos desafios foi replicar o negócio com sucesso em muitos lugares, e até hoje ainda lutam.”
Contudo, as comunidades entram no negócio com vantagem. Não precisarão repetir todas as etapas trilhadas pela Cacauway. O processo e a tecnologia já foram desenvolvidos e facilitados. Com isso, a iniciativa de agregar valor ficará disponível para muitas populações, com potencial de gerar múltiplos negócios similares, diz o professor Ismael.
Outros especialistas ensinaram suas receitas. A agregação de valor nesse tipo de produção é considerada um tanto complexa, com muitas variáveis a serem dominadas.
As pesquisas do instituto atualmente se concentram em cupuaçu, cacau, castanha-do-brasil, açaí, azeites e genômica. O projeto que está mais avançado é o dos laboratórios de cupuaçu-cacau. Em 2018, os pesquisadores escolheram o cacau como a primeira cadeia de valor a ser trabalhada. A semente do cupuaçu, com a qual é possível produzir chocolate que concorre com o chocolate de cacau, não é usada hoje pelas comunidades, é jogada fora.
No início do projeto, em 2019, depois de conhecer os processos de extração, os pesquisadores fizeram um layout do que seria a fábrica de chocolate. Com a pandemia de covid-19 o processo teve um atraso, mas decolou e manteve um ritmo acelerado em 2020 e 2021.
O sistema de energia solar move toda a fábrica e dispensa usina térmica. Uma central de produção de água garante a pureza do líquido com classificação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para uso em cadeia alimentar. A estação de tratamento de água, com recursos não poluentes, é controlada por computador e possui diversos filtros para eliminar partículas, odores, bactérias e fazer cloração. O professor afirma que esse tratamento foi fornecido pela Resix, de São José dos Campos, que patenteou o sistema automático de cloragem.
A equação energética foi desenvolvida pelo instituto, mas a energia solar que será usada na fábrica, poderá servir toda a comunidade posteriormente.
Uma fabricante de chocolates de São José dos Campos (Argonay) também colaborou, conta o o professor Ismael. “O dono da fábrica é um engenheiro aeroespacial que se dedica agora ao chocolate. Tem cabeça de inventor, é engenheiro, capaz de pegar o chocolate e traduzir em tecnologias.”
Com a evolução do processo, os cientistas esperam que as tecnologias, a colaboração e o fomento possam e viabilizar cadeias de valor verticalizadas onde as comunidades locais sejam as donas dos processos, gerem mais recursos, mais riqueza a partir do insumo da floresta, imagina Ismael Nobre.
Fonte: Valor Econômico
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