Em um processo que visa um produto fino, especial e de maior qualidade, o manejo artesanal predomina e cada detalhe importa para agregar sabores e aromas
O cacau fino, de qualidade superior, segue um rigoroso processo de produção até chegar à deliciosa barra de chocolate. Da plantação à embalagem, cada detalhe importa e reflete no produto final, com aromas e sabores característicos que nada se parecem com o que se está acostumado a sentir naquele que vem das grandes indústrias.
Concebido com poucos ingredientes — cacau e açúcar, às vezes acrescidos de manteiga de cacau, leite e itens que vão variar o sabor e dar identidade à barra (como cupuaçu ou castanhas) — e tendo o rastreio da origem, ele contempla o segmento tree to bar (da árvore à barra), que ainda zela pelos impactos ambientais e sociais.
Nesse ramo, são os pequenos e médios produtores do fruto, bem como chocolateiros de menor porte, que fazem a diferença e inovam com produtos que vão além do chocolate: tem nibs, licor, cachaça, geleia. Na grande indústria, o começo da produção já é com a massa de cacau ou cacau em pó, o que reduz as possibilidades de variar.
Todo o controle se dá em um processo predominantemente artesanal e com menor volume produzido, diferente do cacau commodity, que é vendido em maior quantidade e menor qualidade. Isso ocorre porque, segundo os produtores, não há cacau fino suficiente no Brasil para atender a demanda que as grandes indústrias necessitam.
● CACAU COMMODITY: Produzido com menor rigor e maior escala, é vendido em grandes quantidades e a um preço baixo. Representa 97% de todo o cacau produzido no Brasil.
● CACAU ESPECIAL: Desde a plantação, todo o processamento da amêndoa tem o cuidado de potencializar a capacidade sensorial do cacau. Com maior valor agregado, o preço também é superior.
Estima-se ainda que apenas 5% do total comercializado entre países é cacau fino, que atende um mercado de nicho e pode custar até três vezes o valor do cacau comum ou a granel. Além da baixa demanda, o preço elevado é reflexo do zelo na cadeia produtiva desde a plantação, passando pela forma como o cacau é colhido, selecionado e tratado até chegar à prateleira.
NA FAZENDA DE CACAU
O Brasil registra cultivo de cacau em alguns Estados, sendo Pará e Bahia os que produzem maior quantidade. Na Bahia, o polo está ao sul e compreende 83 municípios com cerca de 32 mil produtores e 310 mil hectares plantados.
Nessa região, a maioria das fazendas utiliza o sistema cabruca, em que os cacaueiros se misturam à Mata Atlântica, o que preserva a flora nativa. É um modelo que zela pela sustentabilidade e faz do cacau produzido ali um produto singular, com características próprias.
Pela genética, o cacau pode ser classificado em três grandes grupos, que também têm características próprias relacionadas a aroma e sabor.


A massa de sementes de cacau deve ser levada para fermentação imediatamente, mas pode esperar de quatro a seis horas após iniciada a quebra. Esse processo é realizado em caixotes de madeira, chamados de cochos, onde as sementes repousam sob uma proteção de lona plástica ou folhas de bananeira.
Há um protocolo que orienta revirar o conteúdo periodicamente: na primeira vez, depois de 48 horas; nas demais, a cada 24 horas até que a fermentação finalize. No entanto, o método pode variar de um produtor para outro, que agrega novas técnicas e tecnologias que buscam valorizar ainda mais os sabores e aromas. O tempo de fermentação também muda conforme as condições do ambiente e tipo de cacau.


A engenheira agrônoma Marina Paraíso, especialista em cacau e chocolate, explica que a fermentação é essencial para a constituição de sabores e aromas. Se bem conduzida, pode gerar um produto fino e especial. “A fermentação de qualidade precisa ter aeração, com o revolvimento da massa, que garante entrada de oxigênio e limita bactérias acéticas, que trabalham na formação de ácido acético”, explica.
Nesse ambiente, as sementes ficam em meio a um líquido formado naturalmente e podem chegar a 50ºC. É com esse aumento de temperatura e acidez que ocorre a morte do embrião da semente, o que a faz se transformar em amêndoa.

Ela diz que a casca porosa permite a entrada do líquido ácido e quente na semente, o que faz as células coloridas do interior se difundirem e saírem dela em forma de um líquido arroxeado. “Significa que houve fermentação e, a partir daí, tem os precursores de aroma, sabores e vai ter baixa adstringência.”
Após a fermentação, as amêndoas já estão sem polpa (parte branca) e precisam ser secas a fim de reduzir acidez e umidade, pois ainda estão com cerca de 40% a 50% de água. O tempo de secagem do cacau de qualidade superior pode variar de oito a 12 dias, dependendo do tipo de secador e do clima da região. Há também métodos variados para realizar esse processo.
Forma mais tradicional, as amêndoas ficam ao sol sobre lastro de madeira e devem ser reviradas periodicamente. Nos horários de pico do sol, devem ser cobertas para evitar queimá-las. É mais difícil de proteger da chuva, o que pode levar o cacau a mofar.
Método relativamente novo, as amêndoas ficam suspensas do chão sobre uma espécie de rede. A estrutura tem cobertura plástica com proteção para raios ultravioletas e laterais móveis para permitir abertura e fechamento em dias quentes ou chuvosos.
Une a secagem ao sol com uma cobertura de estufa móvel, uma tendência para as fazendas com grande volume de cacau.
Depois de secas, as amêndoas de cacau podem ser armazenadas em sacarias próprias para esse estoque. O cacau feito com técnicas rigorosas e armazenado corretamente pode ficar estocado por até seis meses sem perder integridade e qualidade. Algumas sacarias especiais podem conservar o produto por tempo superior, o que permite aos produtores negociar o cacau quando o preço for mais atrativo.
No sul da Bahia, o Centro de Inovação do Cacau faz análise de qualidade das amêndoas que são enviadas por produtores. O classificador Jonatan Santos, de 28 anos, chega a avaliar 20 lotes por dia, identificados por uma sequência numérica, em que busca encontrar algumas características de uma boa amêndoa: coloração marrom escuro e interior compartimentado.

Uma a uma, ele as corta ao meio e as classifica sobre uma tábua com espaços para uma das metades (a outra é descartada para não haver duplicação nem interferir na contagem porcentual). “Na parte de cima, a gente coloca as amêndoas marrons, bem compartimentadas. Um pouco mais embaixo, as violetas e brancas, e a última galeria sempre são com defeitos”, explica.
Depois desse processo, Santos calcula a porcentagem de amêndoas boas, o que varia de acordo com o mercado. Alguns adotam um parâmetro acima de 70% marrons, bem fermentadas, e 3% de defeito, como mofo. Já a Indicação Geográfica da Bahia estipula 65%.


NA FÁBRICA
Assim como a fermentação, a torra é uma importante etapa para a fabricação do chocolate, em que as amêndoas passam por mais transformações, para a formação de sabores e aromas.
Tempo e temperatura na torradora são variáveis cruciais que vão dar a devida identidade ao futuro chocolate. Esse processo pode ser feito desde em fornos convencionais, no caso de produções muito pequenas, até em grandes torradores de café adaptados ao cacau.


A amêndoa torrada precisa esfriar em temperatura ambiente para depois ser quebrada e ter separadas as cascas por diferentes sistemas. O que fica são os nibs de cacau, pequenos pedaços de amêndoa.
Os nibs já são um valioso produto, sendo usados em doces de banana, como feito na Fazenda Yrerê, vendidos naturalmente ou caramelizados, como da marca Do Cacao, da Fazenda Capela Velha. A amêndoa inteira também pode ser vendida desta última forma. Os nibs ainda agregam receitas doces e salgadas.


Os nibs passam por um processo de maceração e refinamento para chegar à massa de cacau, que será transformada em chocolate. Em produções reduzidas, melangers (foto abaixo) com capacidade para 5 quilos, por exemplo, mexem uma mistura de cacau e açúcar em porções de acordo com o desejado para a barra: 40%, 50% ou 80% cacau.
Em processo manual ou com maquinário, o chocolate é despejado em formas e reservado em temperatura adequada até ser desenformado. Então, é só embalar e está pronto!



Ao longo desse caminho da árvore à barra, outros derivados do cacau podem ser produzidos, como manteiga de cacau, pó de cacau, licor, suco da polpa e “mel” de cacau, um néctar que, em modelo antigo de extração, é obtido após as sementes serem deixadas em repouso, antes da fermentação. Levemente adocicado, pode ser bebido imediatamente.
Fonte: Estadão